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Carnissa 2

Editorial

o dia 14 de fevereiro de 2003, em são josé dos campos, lourdes azevedo castro foi assassinada pelo ex-marido, raul azevedo de castro. ele a matou com 33 facadas e disse para o delegado responsável pelo caso que tinha dado 3 facadas e depois mais 30 pra ela parar de gritar. em 1935 frida kahlo, artista mexicana, fez o quadro 'unos cuantos piquetitos', esse aí da capa, baseado na história de uma mulher esfaqueada pelo marido, que ao ser interrogado pelo crime disse que só tinha feito 'unos cuantos piquetitos' na mulher, algo como 'uns cortezinhos bestas'

não é assustadora a forma como a sociedade mexicana do começo do século passado se parece com o interior de são paulo no século vinte e um? quando um amigo meu me falou sobre o caso de s. j. dos campos, a primeira coisa em que consegui pensar, horrorizada, foi a história do quadro de frida kahlo. depois fui juntando essas bizarras coincidências históricas a todas as manchetes sangrentas de que conseguia lembrar. aliás, de que não consigo esquecer: desde mutilação genital de meninas africanas, passando pelo infanticídio feminino na china,até o assassinato de minha tia sheila, também pelo marido, em 93.

outras imagens vão surgindo num fluxo intenso: prostituição infantil, escravidão sexual, maus-tratos, espancamentos, crimes 'de honra', abuso e assédio, estupro, tráfico de mulheres... puta merda! é muita coisa, muito medo! é violência demais! o panorama trágico que se forma enquanto estou aqui escrevendo é um retrato doloroso pintado principalmente de vermelho e roxo, como estão marcados os corpos das mulheres nas fotos que 'ilustram' esse número 2.

e fico apavorada. dá vontade de nunca mais sair de casa! ou de me tornar faixa-preta pra socar a cara daquele idiota que ficou falando merda pra mim no ônibus, ou sentar e chorar, pois às vezes só consigo fazer isso. chorar alivia, mas nem sempre ajuda. e esperamos que isso aqui ajude, de alguma forma.

"talvez o amanhã seja um dia melhor, sem mentiras, sem dor." mas enquanto esse amanhã não chega, vamos fazendo o que conseguimos pra melhorar pelo menos um pouquinho. e essas são as motivações desse carnissa número 2. por trás dos textos, das fotos, há tanta coisa que foi dita e feita, tantas descobertas sobre nós mesmas... o processo é longo e ainda não terminou, mas essa foi a melhor síntese que conseguimos trazer pra você, por enquanto. boa leitura, sinta-se livre pra participar. e 'you better keep moving'. tate

A norma e a fuga; agressão/auto-mutilação;

quantas vezes você não quis ser outra pessoa?
quantas vezes por dia você não quer ser aquela mulher de papel, impávida, brilhando na capa da revista?
todo mundo está exposto a esse tipo de agressão, o tempo todo: é a moda, o modelo, o padrão, a regra te oprimindo quando você só quer ser exceção. ou quando, simplesmente, é a exceção mesmo sem ter escolhido isso.
às vezes é fácil se acomodar à excentricidade, tem um monte de gente que faz questão de ir contra a correnteza das mais diversas formas, modificando o corpo, a cara, a alma. e às vezes não é. muitas vezes... não é que eu queira ser igual, não é isso, mas quero poder parecer igual. muita gente tem noção do que estou falando: é quando você não quer emagrecer pra caber na calça jeans de uma loja de departamentos, é tão simples!: o que você quer é uma calça jeans que caiba em você. mas não tem. daí acabamos nos acostumando a acreditar que temos que servir às coisas, quando o propósito das coisas é nos servir. e eu detesto essa subversão cruel dos papéis, realmente detesto, mas estou sempre calculando as calorias, escrava da balança...
às vezes me pergunto se existe alguém que se encaixe re-al-men-te em seu próprio padrão de beleza. porque eu, definitivamente, não me encaixo no meu. e de vez em quando me flagro vestindo uma roupa, por exemplo, pra tentar me encaixar no de alguém. que não sou eu. mas que acabo 'assimilando'. é estranho.
e isso é uma merda, faço papel de ridícula pra mim mesma, porque ao mesmo tempo em que defendo uma prática libertária/libertadora de existência e satisfação pessoal, aquele lance de estar contente consigo mesm@, controversamente pratico uma conduta totalmente oposta. é o ridículo do ridículo: é ridículo que existam padrões implacáveis, é ridícula a docilidade com que a eles nos submetemos, é ridículo que eu me veja encurralada entre um pensar e um sentir que são inversamente proporcionais, é ridículo que, me rendendo a esses mecanismos de controle, ainda pense que EU é que estou no controle da situação. 'ah, eu não faço dieta pra entrar no padrão de beleza, faço dieta por causa da saúde'. am ram. tá bom. mas 'ridículo' não é a palavra exata. é agressivamente patético.
qual é meu problema, então? sou fútil, fraca? me sinto tão desolada por não poder (não querer? não conseguir?) ser quem sou porque não consigo sequer saber como é esse 'quem sou': o que quero ser ou o que esperam que eu seja. mais ou menos assim: 1. será que penso que estou bem assim simplesmente por não ter conseguido estar/ser de outra forma? 2. será que penso que estou/sou bem assim por que não conheço outros 'estares'/'seres'?; ou seja: será que vou me contentar ou vou buscar mais? será que preciso demais? (são várias perguntas sem resposta.) me olho no espelho de vez em quando e penso que sou maior (e melhor) que isso tudo que me dizem, que me cobram, ou isso que aparento ali, refletida. mas, de vez em quando, quando acordo, penso estar finalmente acordando de um pesadelo, que sou outra pessoa totalmente diferente... e isso dói muito porque nunca é verdade. e porque é tão patético.
às vezes você também não quer, desesperadamente, ser outra pessoa?
tate

Aconteceu

Fui estuprada. Não sabe o quanto é difícil dizer isso. Mais difícil ainda foi reconhecer que aconteceu comigo. Eu tinha 14 anos. Fui a um show de “rock” em uma tenda. Próximo ao final do show, fiquei com um cara. Eu tinha bebido um pouco. Ele me levou para um canto escuro. Lá demos alguns amassos. Deixei ele me tocar. Era uma descoberta para mim, nunca tinha sentido aqueles arrepios, aquele tesão. Mas de repente, ele começou a desabotoar minha calça. Eu o impedia abotoando novamente, mas isso não o deteve. Não me lembro bem dos detalhes. Acho que os esqueci de propósito, para não enlouquecer. De vez em quando lembro de um cheiro, de uma cena e sinto um arrepio na espinha, uma vontade tão grande de chorar que me esforço ao máximo para pensar em coisas boas para manter essa lembrança escondida, distante. Só lembro que de alguma forma ele me colocou no chão e conseguiu abaixar as minha calças na altura do joelho. Tentei empurrá-lo, mas não tinha forças. Talvez por causa da bebida ou por não acreditar que aquilo estava acontecendo comigo. Ele me penetrou. Foi muito difícil ele gozar porque eu não estava lubrificada. Ele só gozou depois que eu comecei a sangrar devido o rompimento do meu hímen. Sangrei muito e por uns três dias. Durante o ato, senti como se saísse do meu corpo, como se aquilo não estivesse acontecendo, era só um sonho ruim. Ainda hoje tento acreditar que foi um pesadelo apenas... Na época achei que a culpa por aquilo ter acontecido fosse minha. Eu o deixei me tocar, estava provocando... NÃO! Eu não queria e demonstrei isso. Mas ele não se importou. Eu era só mais uma bêbada fácil de dominar. Mas mesmo bêbada ou com roupas provocantes, de madrugada, enfim, em qualquer situação ninguém tem direito de estuprar. É o meu corpo e eu decido quem vai me tocar e o que vai ser feito com ele. Eu ter bebido não foi a causa do meu estupro e sim a falta de respeito que existe com relação ao corpo das mulheres. Mas mesmo entendendo o que aconteceu, certas coisas foram e são difíceis de superar. Como fazer sexo novamente depois de ter tido uma primeira vez tão traumática. Ou ir novamente a um show, passar perto de lugares escuros... Espero um dia não ter mais medo e acreditar que não vai acontecer de novo, com ninguém.

Quem é o culpado pela violência?

relação com: vida em coletivo/desigualdade social/ intolerância pessoal/capitalismo/governo

Simplesmente não importa mais se moramos em bairros ricos, a violência também chegou a nossa casa. Não há mais como fugir, nem querendo, pois toda noite escutamos tiros, correria e sirene de viaturas. Há pouco tempo atrás nós poderíamos evitar ir aos bairros pobres para não sofrermos violência, mas agora isso não adianta mais, a violência veio a nós: invade nossas casas e habita nossas vidas. Chega de fechar os olhos.
Quando olhamos bem para trás, onde as socieda-des tradicionais eram ainda inexistem ou muito pequenas, não achamos que existia tanta violência quanto existe hoje. Então até agora concluímos que quando as pessoas passaram a viver em coletivo, a violência começou a aumentar meio que automaticamente. Talvez em função da intolerância entre as pessoas que, claro, aumenta quando aumenta o número de pessoas no coletivo, pois a diversidade também aumenta, gerando conflitos. E isso tudo foi piorado em função das maiores desigualdades (desta vez sociais) que foram aparecendo com o tempo. Até chegar um momento no qual algum(a) gênio(coisa) inventou a moeda, que trouxe a substituição das trocas de mercadorias pela compra/venda propria-mente dita. Com isso, as desigualdades cresceram mais ainda, e o mundo viveu uma Revolução incrível que todos conhecemos muito bem. Então talvez com o desenrolar da história o mundo passou a girar em função de duas palavras: produção e consumo. Pronto! Era tudo que não precisávamos. A partir de então a competitividade e a disputa entraram em cena, pois para que o mundo continuasse girando em função dessas duas palavras era necessário alguém ter e alguém não ter. E cada vez mais as sociedades aumentaram, o mundo cresceu em número de habitantes, e tudo piorou muito chegando a um ponto extremamente crítico no qual a violência tornou-se "natural" no processo. Então eliminar um concorrente significaria menos gente no páreo, ou seja, seria "normal". E o governo entra agora no jogo porque cabe a ele fazer a distribuição dos produtos entre os cidadãos. Isso acontece de forma justa? Se não acontece, quem fará a distribuição justa dos alimentos? Nosso universo acredita que o bolso das pessoas está fazendo essa divisão. O bolso cheio leva alimento para casa, o bolso vazio não leva. E isso gera violência. Cadê o governo nessa hora? Existe alguma maneira de distribuir alimentos de forma justa que não envolva o governo ou o bolso das pessoas? Poderíamos então dizer que a violência vem do capitalismo, mas não apenas dele. Acreditamos que existam outros fatores que contribuem para o processo. Já citamos sobre a intolerância entre as pessoas, atribuindo assim um fator de nível pessoal (e não social/econômico) à violência. Claro que acreditamos que a ordem mundial também afeta o modo das pessoas serem (diversidade psicológica), mas acreditamos que não seja sempre assim, pois se fosse, todas as pessoas pobres iriam roubar ou matar, e sabemos que isso não acontece. Então concluímos que também existem fatores internos nas pessoas que influem no processo da violência, e não apenas fatores econômico/sociais. É muito complicado não atribuir causalidade de qualquer coisa que exista hoje ao capitalismo, mas nosso universo entende que é preciso ir mais a fundo dentro do próprio capitalismo para tentarmos achar alguma coisa dentro dele que esteja melhor relacionada com isso ou aquilo. É muito difícil pensar dessa forma (e talvez até sem sentido), mas achamos válido. Queremos muito acreditar que o capitalismo tem subdivisões, porque achamos que é menos difícil mudar uma coisa quanto menor ela seja.

Somos todos culpados!! Todos!!
fernando

Caridade

Eu só penso em mim. Assim como você só pensa em você. Como todo mundo só pensa em todo mundo, nunca deixando de pensar em si.
E, quando eu me sacrifico por você, não pense que eu me sacrifiquei por você. Sacrifiquei-me por mim. Você se sentiu bem, eu me senti legal, caridoso. Se não fosse me sentir assim, não o teria feito.
Sou um egoísta. No sentido literal da palavra. EGOísta. Mas você me acha caridoso, amável. E que fique assim. Senão eu precisarei mudar, como seus outros amigos mudaram.
vítor

Feminismos>> Violentando nossos próprios corpos

Sempre me senti presa a um padrão que eu mesma me impunha, um padrão masculino de comportamento, fala, vestimenta... era algo que eu não podia (e talvez até hoje não possa) evitar; talvez pela minha experiência de vida, talvez pela desvalorização de ser mulher, talvez uma coisa tenha levado a outra... não sei. Sei que ao ler um texto de Susan Bordo, há um tempo atrás comecei a estabelecer algumas relações estranhas...
Nesse texto em questão, chamado “o Corpo e a Reprodução da Feminidade”, Susan Bordo apresenta os distúrbios femininos, e em particular a anorexia, a violência que a anoréxica produz em si mesma, quase como uma forma de protesto, ainda que inconsciente e contraproducente, contra a mística feminina atual.
Ela insere a anorexia nos nossos tempos, como a histeria está no século XIX, e a agrafobia nos anos 50, todas como uma espécie de reação, uma espécie de caricatura da feminilidade da época. “ O corpo dessas mulheres pode ser visto como uma superfície na qual as construções convencionais da feminilidade são expostas rigidamente ao exame, através de suas inscrições de forma extrema e literal” . É como se essas mulheres dissessem: “é isso que vocês querem de mim? Então agüentem!!!” Mas eu quero falar é da anorexia, é aonde eu acho o ponto de ligação com minha experiência.... Na anorexia, a garota descobre como vencer a necessidade e o desejo por um esforço de vontade. Assim ela descobre uma nova “esfera de significados”, ela se reproduz valores tradicionalmente codificados como masculinos na nossa cultura: “ética de autocontrole, autodomínio, de poder através do exercício da vontade”.
Susan defende que na medida em que a anoréxica emagrece, seu corpo perde as tradicionais curvas femininas, e passa a se parecer mais com um corpo masculino. Despreza seus seios, em particular, porque podem caracterizá-la como mulher. Assim, magra (=masculina), ela começa a se sentir fora do alcance da dor, como se ela superasse a feminilidade, sendo quase-homem ela está imune à violência sexual, e à violência simbólica que sofremos todos os dias. Na anorexia ela encontra uma forma de ser superior, de se colocar a salvo, de não ser mulher. “Paradoxalmente descobre isso perseguindo ao estremo um comportamento feminino convencional- aperfeiçoar o corpo como a um objeto.”
E aqui eu enfio meu gancho, o da minha vivência, e de muitas outras meninas que ao passar pela puberdade se rebelam contra o padrão de feminilidade e buscam o oposto. Rejeitam a forma feminina de andar, falar e vestir, rejeitam seu corpo e toda a semântica ligada a mulher. Isso aconteceu comigo, em cada gesto estava inscrita minha recusa a ser mulher. Ser mulher era ser vulnerável, sentimentalóide, burra, e isso eu não podia aceitar, eu não podia aceitar ser assim. Eu era menino, eu era melhor! As outras, que se submetiam à mística, essas sim, mereciam ser taxadas de inferiores, mas não eu, afinal eu não era mulher, eu era melhor!
Porém, essa remodelação do meu corpo e meus gestos não me deu status masculino, não preveniu a violência, não me deixou imune a ela. Apesar de tudo o que fazia, eu ainda era uma menina que tentava, de qualquer forma, desesperadamente, ser menino.
Hoje eu vejo isso como sexismo de minha parte. Afinal de contas, ao buscar uma masculinização, eu estava reafirmando a inferioridade das mulheres. Eu rejeitava não o padrão de feminilidade, em busca de formas diferentes de ser homem ou mulher, mas sim o fato de ter nascido com uma buceta. Eu buscava, e gente é difícil superar, o modelo masculino, era assim que eu queria ser- homem! Reafirmando assim aquilo que o feminismo procura desconstruir: a superioridade, naturalmente dada, do homem.
É extremamente difícil buscar formas alternativas de ser mulher ou homem, parece que quando tentamos fugir da feminilidade tradicional caímos no sexismo da imitação do outro gênero. É uma questão complicada e eu não estou aqui pra dar respostas...
Termino com algumas palavras de Susan Bordo: “A busca de um padrão masculino de moldagem de corpos não é menos determinada por uma construção ligada ao gênero, hierárquica e dualista”
alixe

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Pagina modificada em 11 de July de 2008, às 03h10