kk2011

Mudanças Recentes - Buscar:



editar

Emancipacao-A Solucao Gozada

Emancipação, a solução gozada.[1]

Pouco tempo depois de chegar aqui, senti com toda certeza que tinha abandonado de vez o modo de vida e a luta feminista. Mesmo depois de ter acreditado, por tantos anos, que toda mulher é, em algum gesto, feminista, eu comecei a não reconhecer em mim gestos meus, que eu antes sabia – e eu ainda sabia, mas agora de um jeito confuso – , que eram gestos de resistência. Essa confusão me deixou sozinha. Alguma coisa muito exterior aconteceu em mim e me derrotou. As mulheres que conheci eram independentes, desinibidas, desencanadas, se virando sozinhas na metrópole, muito-bem-obrigada. O ruído que eu sentia quando buscava nelas (eram muitas elas) alguma cumplicidade que fizesse ecoar um impulso de resistência em mim, me causava muita dor. Na maioria das vezes esse ruído é um sorriso que me coloca no lugar de ingênua e recém chegada, recém confrontada com o mundo real. Pobrezinha...

Esperei alguns meses. Passei por um período intenso de reflexões e me flagelei. Por ser moralista, chata, séria demais, que não gosta de piada demais, infeliz demais. E comecei a sentir medo de voltar pra lá de onde eu vim, porque eu não ia ser reconhecida assim tão fraca, tão cansada e tão casada, me virando muito mal.

Nos limites dessa solidão eu troquei e-mails e tentei escrever algumas coisas sobre ter abandonado o bando. Eu vim de um lugar feminista onde a gente fazia muitas coisas juntas. E o limite maior foi tentar falar sobre isso, confrontando esse lugar mágico com a mesa de bar e o cigarro na mão dela, poderosa. Gente, é sério: eu contei tudo, tudo que nós fizemos juntas, foi a melhor fala sobre as nossas práticas que eu fiz na vida, eu sintetizei o tipo de ação direta, a diferença que a gente fez pra fortalecer a luta de outras mulheres, as micro-oficinas lúdicas, o avental radical, deslixo, pornós, as reuniões, tudo. Nessa noite eu voltei arrasada pra casa. Eu tinha certeza que ela era feminista (ela não disse alguma coisa sobre isso?) e foi por isso que eu comecei a falar, mas não ouvi o menor eco.

Em 2006 eu descobri que fazer gênero [2] e feminismo são coisas muito distintas. Alguns meses depois daquela noite na mesa do bar, eu descobri que emancipação feminina e feminismo não tem nada a ver uma coisa com a outra.

Eu já tinha ouvido falar muito disso, muito mesmo. Indicar a diferença entre os feminismos é um cuidado central na fala das feministas com quem eu mais converso (não são muitas). Mas eu nunca tinha sentido isso assim, na pele.

Não é à toa que perceber essa distinção, de forma tão marcada, se deu com o início de uma série de reflexões sobre a minha identidade e a mestiçagem pelo estupro. No dia que eu fiz o exercício de lembrar a cor do muito-bem-obrigada, eu compreendi que gozar daquela emancipação é um privilégio delas, brancas, de classe média, família cristã, na cidade mais rica do país. A fala que me destrói vem delas, e não das mulheres negras e não-brancas com quem tive a oportunidade de conversar algumas poucas vezes desde que cheguei aqui, muito entusiasmada, muito relaxada e sem me sentir culpada, achando que abandonei o feminismo.

Se por um lado essa situação me colocou em movimento, em busca de outras bandoleiras, por outro me deixa amarrada na impossibilidade de dizer qualquer coisa. Como eu vou dizer pra elas que é de uma agressividade chocante o encontro entre aquela mulher branca, que goza de emancipação, e a mulher negra, tímida, que entra muda e sai calada da minha casa? Quanto mais moralista eu vou parecer se disser que não quero gozar nem disso, nem daquilo, que essa solução pelo gozo, individual, não me interessa?

Eu pensei também em escrever alguma coisa sobre como essa emancipação gozada é cristã, é da mulher que quer lembrar, custe o que custar, pise em quem pisar, em que momento da estória foi castrada e privada de sexualidade, uma emancipação que nada tem a ver com quem foi obrigada a ser sensual e irresistível. As vidas inteiras. Mas esqueci, me importo mais em dizer às minhas pareias que, se é possível escolher um passado, fico com o passado do estupro mesmo. Não quero gozar de emancipação nenhuma.


[1] querida amiga, muito obrigada pelo incentivo, por me fazer escrever. me sinto tremendamente aliviada.
[2] referência ao seminário internacional fazendo gênero que "reúne, a cada dois anos, pesquisadoras e pesquisadores do brasil e de universidades estrangeiras na américa latina, estados unidos e europa com pesquisas e publicações no campo dos estudos de gênero e dos estudos feministas".

Editar - Histórico - Imprimir - Mudanças Recentes - Buscar
Pagina modificada em 24 de June de 2008, às 19h29