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Teses Pelo Fim Do Sistema De Generos

Teses pelo fim do Sistema de Gêneros

1.

Partimos aqui do mercado mundial. Toda a vida humana foi, em nosso tempo, submetida ao domínio da economia através do desenvolvimento histórico do sistema de produção de valores. Esse não é apenas um fato econômico da vida moderna. Não é um dado a mais da realidade, ele é em si, a submissão mesma da vida, toda ela, à lógica da produção mercantil, a submissão da vida à economia. Assim, o mercado mundial, através dos seus agentes (os monopólios, que concentram a quase totalidade da riqueza humana em nossos dias) submete todas as dimensões da existência humana à sua lógica cega. Inclusão ou exclusão do mercado: eis a alternativa perversa dada nos marcos do mundo do tráfico mercantil. Isso significa que mesmo aquelas esferas da vida que se nos apresentam como estando a "salvo" da "contaminação" da esfera social, a esfera da individualidade, os mais íntimos recônditos da alma humana, o universo do desejo, a esfera dos afetos, foram inteiramente submetidas à lógica universal da produção mercantil. Não se trata apenas de dizer que só temos acesso à satisfação das nossas necessidades mediante o dinheiro, mas mais radicalmente, de que as nossas necessidades e os nossos desejos são, eles mesmos, produzidos a partir da lógica da mercantilização. Não se trata, assim, ao falar do mercado mundial, de falar de uma dimensão da vida, senão de uma dimensão que se estendeu e contaminou, com as suas determinações, toda a existência humana. Trata-se, assim, de uma completa economização da vida, da redução da vida à economia.

2.

O mercado é a supressão radical do indivíduo. A característica fundamental do sistema produtor de mercadorias é a submissão da individualidade à universalidade do trabalho abstrato. Isso significa que enquanto sou trabalhadora, proprietári@ - ou negativamente, uma desempregad@, uma despossuíd@ (é sempre desse modo que um indivíduo existe para e no mercado) não sou um indivíduo, ou seja, não sou alguém dotad@ de existência, sentimentos, aspirações, desejos próprios e únicos, mas sou precisamente um a mais de uma espécie, ou seja, um trabalhador, um proprietário, um desempregado. Não há, aqui, indivíduos, pois a supressão de toda a individualidade é o dado primeiro da universalização do trabalho abstrato, do trabalho produtor de mercadorias. Nele, o que se realiza é precisamente o oposto da singularidade, da concretude, da individualidade, na medida em que o trabalho se apresenta não como "este trabalho", como um trabalho concreto, mas na medida em que pode ser intercambiado com quaisquer outros trabalhos, mediante o intercâmbio das mercadorias. Ou seja, não conto enquanto sou produtor@ desse ou daquele produto, enquanto faço isso ou aquilo, mas conto exatamente na medida em que, ao receber uma determinada quantidade de dinheiro em troca da minha força de trabalho, posso, por minha vez, trocar esse dinheiro por outros produtos, que satisfarão as minhas necessidades. Assim, não importa, no fundo, aquilo que eu faço, ou o que desejo, apenas o próprio fato de que tudo por ser trocado por tudo, ou seja, de que todas as coisas se apresentam, a despeito da sua diferença, como iguais, na medida em que, numa determinada quantidade(que é dada pelo tempo de fabricação de cada coisa) tudo é igualado, tudo pode ser trocado por tudo. O que ocorre aqui, portanto, é a desaparição do indivíduo e da diferença, sob o peso do domínio das relações mercantis. O mercado como dado que permeia hoje toda a vida humana - mesmo que negativamente, com @s excluíd@s do mundo do trabalho e do consumo - torna universal essa desaparição.

3.

A negação da individualidade que se realiza sob o domínio do mercado se apresenta, contraditoriamente, como a aparição do indivíduo. Justo ali onde o indivíduo real desaparece radicalmente numa existência doravante determinada pelo trabalho abstrato, é que em seu lugar encontramos o discurso do indivíduo, a idéia de uma existência autônoma, os Direitos como direitos individuais. É preciso, uma vez que a universalidade da mercadoria se apresenta, a despeito da negação que realiza, através dos indivíduos - embora aqui reduzidos à condição de meros produtores de mercadorias - que o simulacro da diferença tome o lugar da diferença negada. Se nos primórdios do mercado mundial essa aparição se apresentava na forma abstrata dos Direitos Universais, no capitalismo em crise permanente do final do século XX ele se apresenta como tentativa de inclusão das "minorias sociais" - em cujo interior se manifestaria a individualidade - na esfera do mercado. Toda a diferença é imediatamente, sob a ordem mercantil, reconduzida à identidade abstrata dos "produtores" e "consumidores".

4.

É assim que os movimentos sociais que manifestam a explosão da reivindicação da diferença são continuamente integrados na ordem mercantil: Mulheres - trabalhadoras, consumidoras, nicho de mercado que se abre com a explosão da luta em torno das reivindicações em torno do direito feminino; GLS - consumidores, nicho de mercado, e mercado potencialmente abundante, dizem os analistas, nicho de alta rentabilidade, de alta expectativa de consumo. Negros - consumidores, nicho de mercado: "Negro classe A também consome". O "politicamente correto" é a expressão mais visível, na esfera dos direitos, da tentativa de captura, pela lógica mercantil, da explosão da diferença: todas as formas de discriminação são passíveis da intervenção de um advogado litigante em busca de indenizações. Aqui não estamos, contudo, em face da diferença. Estamos em face do cru simulacro. A estetização que transforma movimentos autônomos de reivindicação do direito à diferença em "nichos de mercado" é apenas a sua face mais visível: "um novo modo de ser mulher", "Negro é lindo"... assim, os mass media, incorporam, cotidianamente, os apelos da diferença como apelos ao consumo: a diferença é eliminada enquanto diferença. Trata-se da inclusão social do diferente pelo e no mercado. Redução, portanto, da diferença, à identidade abstrata de "consumidores."

5.

Aqui estamos, ainda e sempre, na esfera do mercado, na esfera da abstração. As mulheres de carne e osso, maiores vítimas da eliminação definitiva, estrutural e cada vez mais radical de amplas parcelas da humanidade da esfera do trabalho e com ele da esfera do consumo, vítimas preferenciais da miséria e da violência e os seus movimentos autônomos de luta contra a opressão, os homossexuais vítimas da violência cotidiana nos grandes centros, sobretudo aqueles obrigados à prostituição - submissão do desejo à forma abstrata do valor, à mercantilização - os negros, vítimas preferenciais da violência policial e do desemprego, não são aqueles representados na realidade estetizada dos "nichos de mercado". O "indivíduo" portador de direitos é nada mais que um mero vazio, o homem reduzido a uma única dimensão é, pois, o exato oposto da individualidade como sede da diferença..

6.

Como dado primeiro da realidade mundial, é do mercado que partimos. Mas ele é apenas o nosso ponto de partida, enquanto é aquilo a que foi reduzida a vida humana. Mas partimos em direção a um mais-além. É no sentido da superação do mercado mundial e da abstração que o constitui, da superação do trabalho abstrato e da economização da vida inteira que nos dirigimos. Destruir o mercado é condição sine qua da constituição da individualidade, da aparição real das diferenças negadas pela universalização da forma mercadoria. Se não nos contentamos em ser portador@s (ou em nossa maioria, nas condições do capitalismo atual, não-portador@s) de mercadorias, é preciso pôr – no lugar das relações mediadas pelo dinheiro – relações diretas entre os indivíduos. Sem compreender a centralidade da necessidade da destruição do mercado, não é possível sequer falar de vida: estaremos sempre na esfera do simulacro, na esfera da pura representação da vida.

7.

Se a negação do mercado é condição da individualidade, da diferença, é necessário, entretanto, que explicitemos que uma crítica radical do mercado é exatamente crítica da desaparição da diferença. Tal desaparição, contudo, embora ganhe uma centralidade e uma radicalidade inteiramente novas sob o domínio do trabalho abstrato, não se inicia, historicamente, com o domínio das relações mercantis. O desempregado que espanca sua mulher, que mata o homossexual na rua ou que espanca um negro até a morte talvez se reconheça num projeto de superação do mercado, se este se apresenta a ele simplesmente como a possibilidade de satisfação das suas necessidades. A superação do mercado não implica, entretanto, somente no "fim" da restrição à satisfação das necessidades mas é condição da emergência da individualidade e da diferença radicais. Como tal, ela implica, necessariamente, o fim de toda e qualquer identidade ou particularismo que elimine a diferença, ou seja, a condição da superação do mercado é o estabelecimento de relações diretas, anti-hierárquicas, não representativas entre os indivíduos o que supõe, evidentemente, a eliminação de toda e qualquer hierarquização e forma de domínio. No lugar das relações mercantis, portanto, ou estarão relações diretas e horizontais ou estaremos ainda na esfera da negação da individualidade, na esfera do domínio.

8.

A negação da diferença não se inicia com as relações mercantis. Ela é obra da invenção da Cultura. Ela é, assim, obra humana. Como obra humana, ela é conatural, historicamente, ao patriarcado. O sistema de gêneros é ao mesmo tempo fruto e condição da usurpação primeira da diferença. O que caracteriza a humanidade do homem é a cultura - a linguagem, o trabalho. É na cultura que as condições puramente naturais da espécie foram, do ponto de vista histórico, alteradas, abolidas, mantidas e/ou aprofundadas. O gênero, a etnia, a classe, enfim, todos os particularismos que põe o fim da individualidade tem aí a sua origem. A natureza é o dado primeiro com o qual nos confrontamos mas, e é isso mesmo aquilo que caracteriza a aparição de um mundo humano, toda a naturalidade é suspensa pela intervenção da cultura. Assim, o desligamento da sexualidade da função puramente reprodutiva, a construção do desejo - esse outro do instinto - a invenção dos laços amorosos, são, todos eles, obra aberta pelo agir próprio do homem. Nada, uma vez se distanciando das determinações da natureza - façamos fogo, foi assim que se representou a obra civilizatória, numa afirmação primeira da distância que o opõe à animalidade - é mais "puramente" natural no homem. Todas as construções através das quais o homem cria o mundo humano carregam em si a marca dessa ruptura.

9.

A instituição da diferença dos orgãos reprodutores como móvel de identidade social e de domínio são uma instituição humana. Se na natureza há machos e fêmeas, só a espécie humana constitui gêneros. O gênero é uma invenção histórica da humanidade, um modo de identidade, de supressão da diferença que se origina numa dada diferença/identidade naturais, a amplifica e institui a partir dela todo um sistema hierárquico e classificatório. O gênero é um dos modos, modo primeiro, do ponto de vista histórico, do sistema e no sistema não há diferença. Não há, na natureza, homens e mulheres. Essa é uma construção social, uma construção humana. Que todo o arcabouço da nossa civilização se tenha constituído a partir dessa "diferença" de gêneros, parece reforçar a tese de uma naturalidade de tal classificação.Com efeito, se fêmea e macho são determinações biológicas presentes também em outras espécies parece legítimo supor que isso a que chamamos de natureza autorize essa classificação.

O que as culturas - as que se impuseram ao longo da história da humanidade como vencedoras - inventaram, ao longo de suas trajetórias, foi a supressão das diferenças radicais entre os indivíduos a partir do gênero, da etnia, da classe. É, assim, a civilização que suprime a individualidade com a invenção dos sistemas classificatórios. Essa não é, senão, uma crença constituída historicamente. Um determinado modo de "classificar as individualidades" a partir de uma determinação natural. Nada impede, por exemplo, que fossem outras as determinações biológicas que tivessem dado origem a outros sistemas classificatórios possíveis. Se é verdade que a individualidade é diferença radical, os indivíduos temos, todos nós, uma série de características, naturais ou não, todos elas passíveis de encontrar "identidade" com outras individualidades sem, contudo, que tal "identidade" (identificação, aliás, diz melhor o que aqui se pretende, pelo caráter provisório que implica) suprima a diferença originária. O gênero não é, pois, um dado natural, mas um modo historicamente determinado de classificar os indivíduos da espécie humana com base numa dada identidade/diferença biológicas, apenas uma entre tantas possíveis. Não se trata aqui, é evidente, de suprimir as identificações biológicas como realmente existentes mas, apenas, de sublinhar que tais identificações são dados imediatamente naturais, e que cada uma das identificações possíveis dadas na natureza é precisamente uma entre tantas. A individualidade que somos supõe, precisamente, uma multidão de identificações, todas elas igualmente possíveis, ou seja, o fato de sermos irredutível diferença implica que somos sempre essa combinação irredutível e única de identificações possíveis. O que caracteriza a invenção do sistema de gêneros não é, entretanto, o biológico propriamente dito, ao contrário, é justamente a criação das representações associadas às funções reprodutivas que transformam o macho e a fêmea biológicos no Homem e na Mulher.

10.

É, contudo, dominante, a apreensão dessa determinação de gênero como uma determinação "natural". Mas a natureza não é - já foi dito - um modelo para a compreensão daquele que se caracteriza por ser um inventor de novas naturezas a partir de si. O que é próprio do homem é exatamente a suspensão de todo dado natural pela invenção da cultura. Se a tradição , se a herança patriarcal é já um fundamento de tal naturalização do sistema de gêneros, a introdução das relações mercantis, mais que reforçar a naturalização, aprofunda, amplia e universaliza tal naturalização à medida em que submete a naturalidade do sistema de gêneros à naturalização das relações sociais em sua totalidade. A naturalização das relações de gênero é agora momento da naturalização do humano enquanto tal que se realiza sob a forma-mercadoria. Se as relações sociais aparecem naturalizadas sob o domínio do trabalho abstrato, as relações de gênero, momento essencial das relações entre os indivíduos aparecem aqui, também elas, como relações universais e naturais. Assim, a introdução das relações mercantis, a constituição do trabalho como trabalho abstrato - radicaliza, aprofunda e submete tal "naturalização" do gênero à naturalização mesma da propriedade e das relações mercantis: é dado como natural o fato de doravante os indivíduos não mais se relacionarem diretamente mas somente mediante as trocas mercantis. A desaparição integral do indivíduo aprofunda, assim, a desaparição primeira dada já na invenção do sistema de gêneros.

11.

O Gênero - como todo sistema classificatório - implicou, historicamente, uma classificação, uma normatização e uma hierarquização. É a partir da identidade de gênero que se instituem as representações próprias à "natureza" do Masculino e do Feminino: o macho caçador- provedor, a fêmea reprodutora; o masculino, ativo e o feminino, receptivo. Tais representações, são, evidentemente, inteiramente arbitrárias e contingentes. Naturalmente, tudo aquilo que não se encontra nesse esquema de representação cai, no interior do sistema, com todas as gradações e as variações possíveis, no registro do anormal, do desviado, do patológico. A partir da identidade, a diferença é situada como patololgia. É no sistema de gêneros que se situa, histórica e logicamente, a origem não só da misoginia mas também da homofobia. Evidentemente, como todo sistema, o de Gêneros possui um princípio claro, um único príncipio do qual o outro é negação: O Masculino, o pai, foi o primado a partir do qual o feminino apareceu como sendo da ordem do complemento. É nessa relação de complementaridade que se radica, a um só tempo, a subalternidade da mulher, a homofobia e mesmo a determinação das relações amorosas como uma "fusão", na qual desaparecem as individualidades.

12.

Há, contudo, no sistema de gêneros tal como existiu historicamente, na multiplicidade de suas configurações, uma permanência central: a hierarquização dos papéis e o lugar de subalternidade do Feminino. A invenção do Masculino e do Feminino é sistema e, como tal, exclusão da diferença. Esse sistema teve, na história, um nome bem determinado: Patriarcado. Na tradição patriarcal a diferença é mulher. Se o princípio é o do masculino, o "outro" aqui, o negado, o subalterno, é o feminino. Toda a história humana, toda a cultura, no Ocidente e no Oriente, é permeada pela construção real de relações patriarcais de gênero como fundamento das representações - míticas, religiosas, científicas, filosóficas - da subalternidade do Feminino. É assim que um projeto de resgate da individualidade não pode prescindir, como núcleo de sua crítica da realidade, da crítica das relações patriarcais e da subalternidade do feminino. Foi, do ponto de vista de sua gênese histórica, o patriarcado que inaugurou o poder nas relações humanas. A dominação de gênero é, assim, historicamente, fundadora – anterior, portanto, à dominação étnica, à dominação de classe. Esse é o significado central da enunciação da tese 08 do sistema de gêneros como princípio da eliminação da diferença.

13.

Trata-se, portanto, de considerar que a luta pela constituição da individualidade implica, necessária e fundamentalmente, a luta pela superação do sistema de gêneros, na medida em que constituir um mundo fundado na diferença, impõe a eliminação do sistema enquanto tal. Só nesta perspectiva, pensamos, a diversidade, a diferença, poderá se apresentar na sua radicalidade, a partir da superação das identidades que abra espaço à emergência da diferença. Se as relações sociais fundadas no trabalho abstrato dão uma face inteiramente nova à dominação da mulher, implicando na sua condição de "vítima sacrificial" preferencial da crise da sociedade de mercado - através, num primeiro momento, da sua inclusão no mercado e da dupla jornada de trabalho que tal inclusão significou, através, na crise de mercado, da exclusão violenta e preferencial dos postos de trabalho e de sua inclusão no comércio extra-oficial de corpos, através da violência sexual, da violência doméstica, da violência simbólica cotidiana, da pauperização e, por outro lado, implicam numa "masculinização" daquelas que ocupam postos chave no mercado de trabalho, das executivas do capital, de fato as relações mercantis não "inventam" essa condição de subalternidade, mas a amplificam e potencializam: se o mercado é negação da diferença, doravante, sob o domínio da forma valor, só através do dinheiro é possível "contornar" a subalternidade. Mas esse "contorno" expressava radicalmente, desde os primórdios da sociedade mercantil o fato incontornável da subalternidade do feminino no sistema: função igual, salário desigual. Tal continua sendo, de modo cada vez mais radicalizado, o lugar do feminino na sociedade de mercado: a subalternidade, cada vez mais radical.

14.

Se o sistema de gêneros não é um dado natural, mas uma construção humana, isso não implica que as representações do Masculino e do Feminino que ele construiu não possuam a força de uma determinação da natureza, ou seja, que a humanidade, depois de milênios de dominação patriarcal, não tenha "naturalizado" tal sistema e suas representações. É nessa medida que do Masculino e do Feminino emergem, como um modo de organizar as nossas existências individuais, representações que se nos apresentam como naturais: Mulheres são amorosas, dóceis e sensíveis, homens são determinados, agressivos, competitivos. Tais representações, ainda que sejam verdades históricas no sentido de que no horizonte das relações de gênero o Masculino e o Feminino efetivamente se apresentaram, "em geral", a partir de tais características, estas são e serão sempre apenas representações historicamente situadas e portanto só parcialmente verdadeiras - ou "verdadeiras" enquanto mostram uma construção social histórica e determinada. Isso significa não só que as representações em torno do masculino e do feminino são variáveis historicamente, mas sobretudo que no horizonte mesmo de sua validade, num momento histórico determinado, há sempre o espaço de negação de tais representações, porque no mundo da norma há sempre o lugar do diferente, mesmo que numa situação de subalternidade. Assim é que em todos os momentos do sistema, explodiram sempre conflitos de individualidades ou grupos com os modos sociais de representação dos papéis. Como representações historicamente situadas, elas são, evidentemente, passíveis de reestruturação - as últimas décadas, sobretudo, têm observado uma "ampliação" do horizonte possível de representações em torno do masculino e do Feminino, ampliação, contudo, inteiramente presa, ainda e sempre, ao sistema de gêneros enquanto tal, pois o sistema pode e precisa, aliás, do diferente que confirma a necessidade da regra.

15.

Se no sistema a diferença é negada e, finalmente, homens e mulheres vêem a sua individualidade cindida nas representações do masculino e do feminino, que gerações após gerações de homens e mulheres sob o domínio patriarcal viram a sua individualidade negada, desrespeitada, cerceada, isso não significa, em absoluto, que do ponto de vista histórico tal processo seja simétrico. É precisamente na assimetria das relações como relações de poder que o sistema de gêneros se constitui e na medida em que o feminino representou sempre o outro, a diferença - é essa a fonte de toda a misoginia - é lícito, parece-nos, identificar às representações historicamente ligadas ao feminino - ou parte delas - a luta pela diferença enquanto tal. Se há um lugar de subalternidade estabelecido pelo sistema de gêneros, é no confronto com tal subalternidade, é na reivindicação do lugar do outro negado, da diferença, que é possível encontrar a ponte capaz de nos fazer dar o salto no abismo para além da identidade. Se é verdade que no interior do sistema - e isso é válido, pela mesma razão, para as outras articulações sistemáticas como a de etnia e classe - constitui-se um princípio e uma subalternidade, a saída do sistema, a negação deve poder se localizar preferencialmente - embora no interior do sistema todos sejamos igualmente negados como individualidade - justo no âmbito do negado, na diferença. Isso significa que, embora sendo negador de toda a individualidade, o sistema como tal pesa sobremaneira sobre os ombros daquel@s que nos encontramos no lugar de subalternidade. E significa também que a luta pela construção de um mundo humano no qual a individualidade possa, finalmente, se apresentar na sua radicalidade, exige, necessariamente, que a situação de opressão e violência à qual temos sido, por gerações e gerações submetidas, seja por nós mesmas intransigentemente denunciada, negada cotidianamente e radicalmente superada.

16.

Assim, se para que possamos superar as relações mercantis, mediadas pelo dinheiro, é necessário que construamos experiências de organização autônomas, nas quais as relações mediadas sejam substituídas por relações diretas onde sejam superados os princípios da representação, ou seja, se é necessário basear as organizações anti-capitalistas numa experiência cotidiana de ruptura com a passividade e o mando/obediência característicos da relações mercantis e do Estado que as representa, como forma de construir desde já os contornos de uma sociabilidade na qual a diferença é fundamento, do mesmo modo, e com igual radicalidade, é preciso superar as determinações históricas do sistema de gêneros - a misoginia e a homofobia - a partir da própria experiência de luta contra as suas formas atuais. Assim, se a experiência da construção de organizações autônomas, ou seja, anti-hierárquicas e horizontais é condição da superação das relações mercantis porque põe, desde a experiência cotidiana a ruptura prática com a mediação e a representação, é evidente que também no seio das lutas que contestam a opressão de gênero - e que parte, portanto, forçosamente da nossa situação presente, ou seja, do gênero enquanto uma realidade plenamente vigente do ponto de vista social - é necessário que superemos os limites do sistema de gênero na nossa própria prática cotidiana. Ou seja, trata-se de encontrar meios concretos de ao mesmo tempo em que partimos da realidade da opressão Feminina e da homofobia, destruirmos as representações históricas ligadas à idéia de sistema enquanto tal. É necessário, pois, que a individualidade e as relações diretas se manifestem na forma do combate cotidiano e intransigente a todas as formas de misoginia e homofobia sem que com isso, contudo, caiamos numa naturalização do feminino, do masculino ou do homoerotismo. Trata-se, assim de que procuremos experimentar, desde já, a ruptura com o sistema de gêneros buscando incorporar a diferença e a individualidade como o fundamento, embora negado na nossa condição atual, daquilo que somos e do mundo que queremos construir como a nossa morada.

Se a negação do sistema - como foi dito acima, encontra o seu lugar privilegiado, quanto ao sistema de gêneros, nas mulheres e homossexuais, pela condição de subalternidade, que seja o combate à subalternidade submetido ao combate mesmo à idéia do gênero enquanto tal, ou seja, que o combate à subalternidade do feminino e à exclusão possa ir à raiz do problema compreendendo que a crítica à situação de opressão feminina ou contra a homofobia só se realiza, na radicalidade, como crítica ao sistema de gêneros em sua totalidade, ou seja, como crítica ao sistema enquanto tal. Assim, é absolutamente necessário que busquemos, no interior das experiências autônomas de combate ao mercado, realizar um trabalho nuclearmente voltado ao combate à misoginia e à homofobia como expressões radicais do sistema de gêneros no mundo contemporâneo sem que, contudo, do ponto de vista de sua forma mesma, tal trabalho aprofunde e consolide as determinações do sistema mas, ao contrário, buscando incorporar todos os indivíduos que se coloquem na perspectiva desse combate, experimentando superar, assim, na própria forma de nossa constituição como movimentos autônomos de recusa ao sistema de gêneros, as suas determinações. Ousemos pois, como nos sugere a palavra de ordem da convocação deste seminário, quebrar as determinações do sistema. "Ni Hombres, Ni Mujeres, sino TODO LO CONTRÁRIO!!!"

Notas:

1. Indivíduo, tal como pensamos aqui, designa simplesmente a absoluta unicidade, a singularidade absoluta que faz dos homens entes radicalmente diversos entre si. Não é possível, dados os limites dessas teses, enfrentar aqui a complexa questão de fundamentar esse uso do conceito de indivíduo. Usamo-lo aqui na medida em que ele parece, na linguagem comum, traduzir exatamente a idéia de unicidade que aqui se quer sublinhar. Isso não significa, contudo, que não haja uma clara consciência do quão problemático é esse conceito, sobretudo quando consideramos a perspectiva central dessas teses, que é a de sublinhar a luta pela diferença. Seria, entretanto, necessária uma longa digressão - que não cabe nos limites dessas teses - para legitimar o uso que aqui fazemos dele. Não se trata, pois, de um uso acrítico do conceito, mas de "contornar" o problema, contentando-nos, provisoriamente, com o significado usual de indivíduo como o único, não como "um" de uma espécie.

2. Não é à toa que a representação é o modo próprio de ser da vida social no mundo do tráfico mercantil: a esfera da política, a esfera da "coisa pública" compreendida como tarefa de especialistas, de uma parte destacada das individualidades, se apresenta aí e tem que se apresentar, como representação. A vida em comum não é, no mundo do tráfico, algo que nos diz respeito diretamente, ela deve ser coisa dos representantes. Os políticos tomam, na esfera do "público", o lugar do trabalho abstrato na esfera da economia: como o outro, usurpam o lugar do concreto, do real, e põe a sua representação. A representação na esfera da política é, assim, a extensão do princípio do simulacro presente na forma nuclear do mundo do tráfico mercantil: o trabalho na sua forma abstrata é representação universal real do trabalho concreto. Não há indivíduos e nem vontades, há cidadãos e representantes da vontade. Mas a vontade, já dizia o primeiro grande crítico da representação no mundo moderno, não pode ser representada, porque a vontade não se transfere.

3. Não é aqui o momento, evidentemente, para tratar das relações do homem com a natureza e da sua feição historicamente destruidora. Não se trata, aqui, de uma valoração iluminista, progressista, das relações do homem com a natureza, mas do simples reconhecimento da cultura como aquilo que é próprio do invenção de si mesmo pelo homem. Que essa feição destruidora é a face das relações entre o homem e a natureza sobretudo a partir da constituição do capitalismo, é uma outra questão, certamente central para um projeto de superação do mercado, que extrapola, entretanto, os limites destas teses.

4. Sistema aqui significa um processo real de eliminação da diferença a partir de certas particularidades. Tomando certos caracteres particulares que diferenciam alguns indivíduos entre si e ao mesmo tempo os identificam com outros, remetendo-os, assim, a uma totalidade, a individualidade é agora pensada não só como diferença, mas também como identidade. O sistema é, assim, o modo no qual, ao ser integrada numa totalidade, a individualidade é precisamente negada na sua irredutível diferença. Ao ser "parte" de uma totalidade, todo indivíduo é, ao menos em certo sentido, um a mais na totalidade. Trata-se aqui justamente do problema referido na nota 1. O sistema é aqui pensado, então, como um evento real e integral que é um fato da existência, da linguagem e do pensamento.

5. É freqüente que encontremos, no seio do movimento feminista ou na abordagem da questão de gênero na literatura, uma tentativa de contrapor à tradição patriarcal uma natureza mulher, como a que encontramos na tese do Matrismo, período anterior à divisão patriarcal de poderes, que pretende resgatar uma natureza mulher anterior ao sistema de gêneros ou na apresentação de um princípio fêmea biológico, a tese de que os fetos seriam, todos, em princípio, femininos (cf. Badinter, E.). Essa operação, contudo, nos põe em face de uma transposição de um universo lingüístico, valorativo e classificatório que é justo a característica central do "sistema" transposta de modo inteiramente arbitrário para um universo marcado pela diferença, ou seja, pensa a partir do sistema - porque o feminino como princípio exige, como todo princípio, a complementaridade - para explicar relações que seriam exatamente da ordem da ausência do sistema, ou seja, da ordem da diferença, fazendo, assim, uma verdadeira metafísica do feminino. Perguntamo-nos, aqui, inclusive, não só pela validade de tal procedimento mas, também, pelo sentido da reivindicação de um "princípio Mulher"(cf. Morace, Sara), na medida em que a reivindicação do primado do feminino só inverte a ordem na hierarquia do sistema, reproduzindo o horror à diferença que todo sistema classificatório traduz e implica necessariamente.

6. É evidente que a configuração do sistema de gêneros sofreu inúmeras alterações históricas - inclusive quanto ao aceitável e o inaceitável - ele observou, assim, quanto à norma e ao "desvio", várias formas possíveis ao longo da história humana. Entre os gregos, por exemplo, o sistema de gêneros não implicava homofobia, antes valorava positivamente, em função da absoluta misoginia, as relações entre "iguais". É absolutamente intraduzível nos limites destas teses e mesmo de uma extensa pesquisa antropológica a explicitação dessa multiplicidade de variações.

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Pagina modificada em 15 de April de 2008, às 13h41